A psiquiatria tradicional tem historicamente adotado uma abordagem predominantemente biomédica para compreender o sofrimento emocional. Essa perspectiva entende os transtornos mentais como resultantes de alterações fisiológicas e químicas no cérebro, sendo frequentemente tratados com intervenções farmacológicas.
Essa visão reducionista tem sido criticada por diversos estudiosos, principalmente por negligenciar fatores sociais, históricos, geográficos, familiares e experienciais, que desempenham um papel fundamental na constituição da subjetividade e no desencadeamento de um sofrimento emocional.
"A psiquiatria tem sido o modo como a sociedade moderna interpreta e se relaciona com o sofrimento mental. Destes sofrimentos, a loucura é o mais chamativo. A psiquiatria é, principalmente, um instrumento da sociedade para lidar com a loucura. Logo, ela reflete a mentalidade desta sociedade. A psiquiatria não é uma ciência pura nem neutra: é governada pela visão de mundo, mentalidade e ideologia da sociedade que a pratica e patrocina."
(Serrano, em 'O que é Psiquiatria Alternativa')
Ao utilizar a biologização como principal perspectiva de análise, a psiquiatria tradicional desconsidera a complexidade das experiências humanas, tratando o sofrimento como um fenômeno isolado do contexto de vida do indivíduo. Essa abordagem reforça a medicalização da existência, onde emoções e reações diante de adversidades são percebidas como patologias a serem tratadas com psicofármacos.
Neste sentido, a tristeza, a ansiedade e a angústia, que muitas vezes ocorrem por conta de experiências difíceis, situações traumáticas, condições de trabalho opressivas, relações interpessoais abusivas ou exclusões sociais, são interpretadas como sinais de um desequilíbrio neuroquímico a ser corrigido e ajustado por meio de medicamentos.
Fazendo contraponto a esta perspectiva, as abordagens críticas em psicologia e psiquiatria enfatizam a importância dos fatores sociais, relacionais e históricos no sofrimento psíquico. A antipsiquiatria, por exemplo, questiona os critérios normativos que definem a saúde mental e denuncia o uso da psiquiatria como ferramenta de controle social. A fenomenologia existencial destaca a singularidade da experiência subjetiva e a necessidade de compreender o sofrimento a partir da vivência do próprio indivíduo em seu mundo.
Michel Foucault, em seus estudos sobre a história da loucura, evidenciou o modo como os discursos psiquiátricos se consolidaram historicamente como mecanismos de normalização e disciplinarização dos corpos e das mentes. Sua análise demonstra que a categorização da loucura e dos transtornos mentais não é neutra, mas atravessada por relações de poder, que determinam quais formas de existência são consideradas adequadas e quais devem ser corrigidas ou silenciadas.
Abordagens contemporâneas destacam a necessidade de compreender o sofrimento psíquico dentro de seus contextos específicos. A psicologia sócio-histórica, influenciada por Vygotsky, enfatiza que os processos psicológicos se desenvolvem a partir das interações sociais e culturais, entendendo o sofrimento emocional em sua relação com as condições materiais e simbólicas onde o sujeito está inserido. A etnopsiquiatria propõe que diferentes culturas possuem formas diversas de compreender e lidar com o sofrimento, contrariando uma visão única e universal de saúde mental.
"O que a experiência etnológica nos ensina é que o econômico, o político, o parental, o religioso, o médico, o psiquiátrico etc. são recortes orientados por categorias próprias exclusivamente das nossas sociedades e aos quais correspondem campos disciplinares cujas fronteiras se deslocam e se esfacelam quando passamos de uma cultura para outra ou em relação a uma mesma cultura no tempo."
(Laplantine, em 'Aprender Etnopsiquiatria')
As perspectivas críticas em psicologia nos possibilitam pensar alternativas que integram múltiplos fatores na compreensão do sofrimento psíquico, reconhecendo os processos neurobiológicos, mas que sua manifestação e significado são atravessados por contextos sociais, políticos e culturais. Neste sentido, a terapia pode ser um espaço de ressignificação das experiências, permitindo compreender a dor num contexto mais amplo, em vez de reduzir a um diagnóstico psiquiátrico.
"Portanto, para a Sócio-Histórica, falar de fenômeno psicológico é obrigatoriamente falar de sociedade. Falar de subjetividade humana é falar da objetividade em que vivem os homens. A compreensão do "mundo interno" exige a compreensão do "mundo externo", pois são dois aspectos de um mesmo movimento, de um processo no qual o homem atua e constrói/modifica o mundo e este, por sua vez, propicia os elementos para a constituição psicológica do homem."
(Bock, em 'Psicologia Sócio-Histórica')
Superar a visão estritamente biologicista da psiquiatria tradicional demanda reconhecer a complexidade do sofrimento humano e abrir espaço para abordagens que valorizem a subjetividade, a história e o contexto social dos indivíduos. Deste modo, talvez seja possível construir práticas de cuidado mais éticas e eficazes, que respeitem a singularidade de cada experiência sem reduzi-la a um mero desequilíbrio químico.
Referências:
BOCK, Ana M.; GONÇALVES, Maria da G.; FURTADO, Odair. (orgs). Psicologia Sócio-Histórica: uma perspectiva crítica em psicologia. 6 ed. São Paulo: Cortez, 2015.
LAPLATINE, François. Aprender Etnopsiquiatria. Trad.: Ramon Vasques. São Paulo: Brasiliense, 1998.
SERRANO, Alan Indio. O que é Psiquiatria Alternativa. São Paulo: Brasiliense, 1992.