O corpo ao invés da moral

O filósofo alemão Friedrich Nietzsche foi um dos maiores críticos da moral tradicional, entendendo esta como uma disposição que se apossa de nosso corpo e de nossa vida, nos direcionando a todo momento como devemos ser e agir, o que podemos ou não fazer, aonde ir, inclusive determinando o que é certo e errado, adequado e inadequado, diminuindo assim nossa possibilidade de fazer algo diferente e compor outras maneiras de viver.

Como saída a este problema, ele propõe nos orientar a partir de nosso próprio corpo, ao invés da moral. Quando damos atenção a nosso corpo e experiências, vamos percebendo o que faz bem e o que não faz bem para nós mesmos, a nível singular e pessoal. Essa disposição contraria a moral tradicional, pois não direciona nossa ação e escolhas segundo que é correto e adequado moralmente, mas partindo daquilo que faz bem para o nosso corpo, do que o amplia e o alegra.

Além de criticar a moral tradicional, Nietzsche também foi um grande crítico da tradição filosófica ocidental. Sua genealogia revelou como os valores morais são historicamente construídos e operam como dispositivos que regulam e limitam a vida. Segundo ele, a moral não é uma condição intrínseca do bem, mas uma forma de controle que se apossa do corpo e da existência, restringindo as possibilidades de experimentação e criação de modos de vida.

"(...) a moralidade não é outra coisa (e, portanto, não mais!) do que obediência a costumes, não importa quais sejam; mas costumes são a maneira tradicional de agir e avaliar."
(Nietzsche, em 'Aurora')

Os valores morais tradicionais, herdados do cristianismo e do platonismo, impõem uma concepção dicotômica da realidade, separando corpo e pensamento, reforçando um ideal de renúncia que enfraquece o potencial vital dos indivíduos. Na "Genealogia da Moral", Nietzsche explora como os valores morais surgiram a partir de um ressentimento dos fracos contra os fortes, instaurando uma inversão de valores que enaltece a fraqueza e condena a potência da vida.

"Os fracos impuseram sua moralidade ao mundo, uma moralidade que nega a força, que diz 'não' à vida e aos instintos naturais."
(Nietzsche, em 'Genealogia da Moral')

Nietzsche propõe a superação da moral tradicional por meio da transvaloração de todos os valores, que consiste na afirmação do corpo e na afirmação da vida, em sua plenitude e seu caos. Em vez de nos guiarmos por normas externas que ditam o que é certo ou errado, ele propõe que nos orientemos por nosso próprio corpo e suas intensidades. É por meio da experiência do corpo que cada indivíduo vivencia de forma singular o que lhe fortalece ou o que lhe enfraquece.

Deste modo, deixamos orientar nossos valores pela moral normativa, e passamos a dar vazão para nosso corpo e nossas próprias experiências. Vamos percebendo o que nos faz bem e o que não nos faz bem, o que nos expande e o que nos contrai, o que nos alegra e o que nos entristece. Com isso, podemos traçar novos caminhos para a vida, que não estejam determinados por uma moral, mas que se relacionam com nossas próprias experiências.

"Por trás dos teus pensamentos e sentimentos, irmão, há um poderoso soberano, um sábio desconhecido - ele se chama Si-mesmo. Em teu corpo habita ele, teu corpo é ele. Há mais razão em teu corpo do que em tua melhor sabedoria."
(Nietzsche, em 'Assim falou Zaratustra')

O corpo, segundo Nietzsche, não é apenas um instrumento passivo, mas uma instância ativa de avaliação da própria existência. Conforme a filosofia dionisíaca e criadora, em vez de se orientar por normas externas impostas pela moral tradicional, o indivíduo deve se guiar por suas experiências corporais, que vão lhe indicar o que é bom ou ruim para si. Assim concebe-se a vida não como algo pronto e determinado, mas como obra de arte que se faz e refaz a cada momento.

"A ética nietzschiana é uma ética da experimentação, uma ética da vida como obra de arte."
(Deleuze, em 'Nietzsche e a Filosofia')

Nietzsche nos convida a uma postura ativa diante da existência, rejeitando os valores morais que nos limitam para afirmar aquilo que nos fortalece. A superação da moral não é um simples abandono das normas, mas uma transvaloração que coloca o corpo e suas potências no papel de criar de novos valores e experimentar novos modos de vida, mais salutares, potentes e criativos.


Referências:
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 2006.
NIETZSCHE, Friedrich. Além do Bem e do Mal. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os preconceitos morais. São Paulo: Companhia de Bolso, 2016.
NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da Moral: um escrito polêmico. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

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