Deleuze e a esquizoanálise

Gilles Deleuze (1925-1995) foi um dos filósofos mais inovadores do século XX, seu pensamento rompeu com muitas das tradições filosóficas dominantes, propondo outras maneiras de pensar a filosofia enquanto criação e transformação. Sua filosofia se caracteriza pela valorização da diferença, da multiplicidade e da experimentação, se opondo às estruturas fixas e totalizantes da metafísica clássica.

Em suas primeiras obras, Deleuze se interessou por revisitar e reinventar os pensamentos de filósofos esquecidos ou marginalizados. Enquanto seus contemporâneos se voltavam para figuras como Hegel e Heidegger, ele se aprofundou em filósofos como David Hume, Henri Bergson, Friedrich Nietzsche e Baruch Spinoza, buscando explorar pensamentos alternativos e distintos caminhos para a filosofia.

No final dos anos 1960, ele passou a estabelecer uma parceria com o psicanalista Félix Guattari, onde juntos comporam a esquizoanálise, uma abordagem teórica e prática apresentada nas obras "O Anti-Édipo" (1972) e "Mil Platôs" (1980). Essa perspectiva crítica propõe uma reinvenção radical da maneira como entendemos o inconsciente, o desejo e a subjetividade, deslocando o foco da psicanálise tradicional para uma análise social, política e criativa.

Para Deleuze e Guattari, o inconsciente não é um espaço marcado pela falta, como concebiam Sigmund Freud e Jacques Lacan, mas uma fábrica de desejos, um espaço de produção de desejos, em constante em criação e transformação. Esse entendimento rejeita a ideia de que o desejo esteja atrelado a uma falta ou a um modelo edipiano de interpretação centrado na família. Em vez disso, eles entendiam que o desejo é atravessado por fluxos desejantes, sociais, econômicos e históricos.

Segundo a esquizoanálise, a sociedade capitalista reprime os desejos e reduz a vida a padrões normativos que aprisionam os indivíduos em modos de existência limitados e empobrecidos. Por destacar a possibilidade de criação de outros modos de vida, a análise nunca pergunta "o que uma coisa significa?", mas "para que serve?", ou "como funciona?". Seu intuito é ampliar as potências dos indivíduos, possibilitando novas conexões e modos de vida.

Um dos principais conceitos da filosofia de Deleuze é o rizoma, onde entende que os modos de pensamento e de existência acontecem de maneira não linear e não hierárquica. Diferente do modelo arbóreo tradicional, ou da noção de uma subjetividade identitária, que parte de uma única raiz e se ramifica em direções predeterminadas, o rizoma possibilita conexões múltiplas e heterogêneas, sem um centro fixo ou estrutura única.

O conceito de rizoma é fundamental para compreender o pensamento e a prática esquizoanalítica, que busca explorar as conexões entre sujeitos, espaços, objetos e afetos, rompendo com as estruturas rígidas tradicionais, como as noções de identidade e psiquê, que bloqueiam a criatividade e o devir.

A clínica esquizoanalítica é uma prática que se orienta a partir da experimentação e criação de novas possibilidades de subjetivação. Em vez de interpretar o sujeito a partir de diagnósticos ou categorias fixas, a esquizoanálise visa mapear os fluxos de desejo, as relações sociais e os afetos que atravessam uma pessoa, e o que ela pode fazer diante disso.

Esse processo utiliza elementos diversos como a arte, a poesia e a música para fomentar a criatividade e abrir caminhos alternativos de subjetivação. Seu objetivo não é "curar" no sentido tradicional, mas criar condições para que o sujeito possa se reinventar, expandindo suas potências e rompendo com bloqueios que impedem seu movimento e devir.

"Jamais interprete, experimente."
(Gilles Deleuze)

Deleuze entendia a vida como um campo de criação contínua, onde o pensamento segue como um ato de experimentação. Sua filosofia destacava a importância de valorizar os processos em vez de buscar significados fixos. Na clínica, isso consiste em acompanhar o sujeito em sua singularidade, auxiliando a criar novos modos de vida, mais salutares e interessantes, que o conectem a outros mundos e possibilidades.

A esquizoanálise é uma prática micropolítica que desafia os modelos hegemônicos de subjetivação, abrindo espaço para a criação de novos territórios existenciais. Ela questiona o modo como nossas relações sociais, econômicas e afetivas configuram nossas maneiras de ser, propondo uma análise crítica do capitalismo enquanto um sistema que bloqueia o desejo e a criação, buscando habilitar a potência revolucionária e criativa do desejo.

"Não há programas de vida, cada um se constrói e surge na prática, as coisas vão se fazer, fazendo."
(Gilles Deleuze)

A filosofia de Gilles Deleuze e a esquizoanálise nos convidam a abandonar os modelos fixos e normativos de pensamento e a nos engajar em processos de criação e experimentação. Ao fazer isso, abrimos caminhos para formas de vida mais intensas, múltiplas e livres, onde o desejo não é interpretado ou reprimido, mas experienciado como uma força criativa e transformadora.

Referências:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: Capitalismo e Esquizofrenia. Tradução de Luiz B. L. Orlandi e Suely Rolnik. São Paulo: Editora 34, 2010.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil Platôs: Capitalismo e Esquizofrenia 2. Tradução de Ana Lúcia de Oliveira, Aurélio Guerra Neto e outros. São Paulo: Editora 34, 1995-1997.
DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a Filosofia. Tradução de Ruth Joffily. Rio de Janeiro: Editora Rio, 1976.
DELEUZE, Gilles. A Literatura e a Vida. In: Crítica e Clínica. Tradução de Peter Pál Pelbart. São Paulo: Editora 34, 1997.

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