Pensar outras possibilidades de perceber e lidar com a vida, encarando como uma experimentação e ensaio constante, se abrindo para o acaso, o inesperado e a impermanência. Para comentar essa perspectiva e reflexão vou dialogar com John Cage, compositor estadunidense, escritor e crítico de arte, e Gilles Deleuze, filósofo francês, que entendia a filosofia como um processo de criação.
John Cage (1921-1992) se dedicou à experimentação musical, criando música a partir do acaso, do aleatório, fazendo um uso não convencional de instrumentos musicais, e inserindo na música elementos não musicais. Criou o piano preparado, utilizou o silêncio em suas composições e experimentou a indeterminação na música.
Uma de suas obras mais conhecidas é 4'33, composta em 1952, tendo a duração de 4 minutos e 33 segundos de silêncio, sendo preenchida, portanto, pelos sons do ambiente onde é executado. Cage entendia a música como uma afirmação da vida, utilizando elementos do cotidiano, sem fazer distinção entre os ruídos e os sons "musicais", integrando os sons ambientes e dos espectadores.
"E qual é o propósito de escrever música? Um, claro, é o de não lidar com propósitos, mas com sons. Ou a resposta pode ser dada sob a forma de um paradoxo: um despropósito proposital ou uma brincadeira sem propósito. Essa brincadeira, contudo, é uma afirmação da vida - não uma tentativa de dar ordem ao caos, nem tentar melhorar a criação, mas simplesmente um modo de despertar para a própria vida que vivemos, que é tão boa se tiramos de seu caminho o nosso intelecto e o nosso desejo, deixando-a agir de seu modo."(John Cage, em 'Silêncio')
Segundo ele a música é uma performance, muito parecida com a vida. Ele também se interessava pelo anarquismo, pelo budismo, cultivar cogumelos e pelo “I Ching” (O livro das mutações), antigo oráculo chinês. Entre as características de suas obras estão a indeterminação, o acaso, a participação dos ouvintes e o uso de ruidos ambientes, aceitando a aleatoriedade e a imprevisibilidade.
Para Cage, o compositor não é aquele que cria uma obra segundo parâmetros previamente estabelecidos, mas aquele que manipula sons diversos, onde qualquer som é permitido. Seu papel é possibilitar que a experiência sonora aconteça, onde o resultado é muitas vezes desconhecido e novo. Ao abraçar o acaso a música passa a refletir mais autenticamente a natureza imprevisível da vida.
Em vez de controlar cada aspecto da composição, permitia que certas decisões fossem tomadas aleatoriamente, usando métodos como o lançamento de moedas. Em sua composição "Music of Changes" (1951), fez uso do I Ching para determinar a duração das notas, a dinâmica e a escolha dos sons. Em "4'33" (1952), a indeterminação emerge dos sons do ambiente que ocorrem durante a performance, desafiando a própria noção do que é música.
"É que a música, me parece, é o processo em estado puro. (...) E, ainda aí, eu diria que, para mim, a música não é uma questão de estrutura, nem de forma, mas de processo. Penso, muito rapidamente, para fazer aproximações, que um dos músicos que mais pensa a música em termos de processo é John Cage. Bem, quero dizer, a música é processo. De certa maneira, ela é amor à vida, fundamentalmente."(Gilles Deleuze, aula 'Anti-Édipo e outras reflexões')
Gilles Deleuze (1925-1995) pensava a filosofia como uma arte de criar conceitos e espaços, tendo subvertido a ideia de "ser" pela noção de "devir". Sua filosofia da diferença é contrária a noção de identidade ou repetição, evidenciando a singularidade e a diferenciação constante na vida e no pensamento. Segundo ele, a filosofia atravessa a arte, a criação e a experimentação, e fez filosofia dialogando com artes plásticas, literatura e cinema.
"O devir não é se direcionar para uma forma, é algo inacabado, sempre em curso, o devir sempre está 'entre'."(Gilles Deleuze, em 'A Literatura e a Vida')
O acontecimento escapa a lógica da identidade e da causalidade, ficando evidente em momentos de ruptura e diferenciação, marcado pela imprevisibilidade e pela capacidade de gerar novas possibilidades e configurações de vida. Trata-se de eventos singulares com o potencial de afetar e transformar as estruturas estabelecidas, atravessando relações complexas e imprevisíveis, como um signo vazio, imprevisto e não-planejado.
Todo acontecimento é uma experiência, no âmbito do não-ser, coexiste ao devir. Suas dimensões são extensiva (corporificada, material, concreta) e intensiva (abstrata, virtual, em movimento, instável). O acontecimento fica mais evidente quando algo inusitado, disruptivo, inesperado ocorre - os acontecimentos são virtuais, não seguem a mesma dinâmica do agora concreto, podendo recomeçar e retornar a qualquer momento, sempre de modo diferente, sem se esgotar.
"O acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera."(Gilles Deleuze, em 'Lógica do sentido')
Quando buscamos identificar o que há de distintivo em nós, não estabelecemos um contato com a diferença, mas subordinamos ela à representação. A imagem do pensamento é moral, representativa e dogmática, enquanto que o pensamento sem imagem evidencia a mobilidade, a impermanência e a diferença. O ser passa a ser percebido como devir, imanente, material, aberto, múltiplo e singular.
A diferença é uma disposição radicalmente nova com relação ao ser, sendo a afirmação de seu devir, não necessitando uma identidade. As coisas estão sempre se dissolvendo, se reconfigurando e se refazendo. Mas, o pensamento da representação não suporta a diferença, que dissipa identidades e desfaz o "eu". A vida é um fluxo de intensidades pré-subjetivas ou a-subjetivas, as singularidades e suas transformações nunca cessam.
O ser não pode ser definido por uma identidade, é singular, múltiplo e diferente, não precisa ser identificado. Sua filosofia possibilita uma perspectiva fluida sobre o ser e a vida, que inclui a mobilidade, a imprevisibilidade e a singularidade. A filosofia da diferença propõe novos modos de estabelecer relações com o pensamento, com o mundo, com os outros e com nós mesmos, afirmando as diferenças e as singularidades.
Deleuze criticou a visão tradicional, que tende a estabelecer identidades fixas e categorias rígidas, enfatizando a multiplicidade, a heterogeneidade e a complexidade. A diferença é percebida como algo positivo e produtivo, fundamental para a transformação, potencial criativo para gerar novas formas de pensar, agir e relacionar. Sua filosofia coloca em questão as noções de identidade fixa e unidade, dando vazão à impermanência e ao fluxo do devir.
"O verdadeiro charme das pessoas reside em quando elas perdem as estribeiras, quando não sabem muito bem em que ponto estão. Não são pessoas que desmoronam, pelo contrário, nunca desmoronam. Mas se não captar a pequena marca de loucura de alguém, não pode gostar desse alguém. É exatamente este lado que interessa. E todos nós somos meio dementes (...) aliás, fico feliz em constatar que o ponto de demência de alguém seja a fonte do seu charme."(Gilles Deleuze, 'O Abecedário de Gilles Deleuze', 1989)