O "eu" é uma ficção

O 'eu' não passa de uma ficção, uma conveniência, uma fantasia que criamos para guiar e conduzir nossa vida e escolhas, uma ficção que acreditamos. Há múltiplas forças que nos coabitam: interesses, experiências, disposições. Somos mais que um “eu”, uma unidade ou uma identidade. Somos múltiplos, diversos, heterogêneos, estranhos a nós mesmos.

Não há um "eu" escondido a ser encontrado, decifrado ou interpretado, mas multiplicidades a serem experimentadas - deslocamentos, rupturas, movimentos e transformações... Estamos a todo momento transformando e nos diferindo, não há uma unidade fixa e imutável, somos muitos, temporários e transitórios.

"Talvez, o objetivo hoje em dia não seja descobrir o que somos, mas recusar o que somos."
(Michel Foucault, em 'O sujeito e o poder')

O filósofo escocês David Hume foi um grande crítico da ideia de um "eu", segundo ele o que temos são somente experiências, e elas não nos habilitam a certificar a existência de uma unidade ou permanência. Nietzsche também criticou a ideia de consciência, para ele o "eu" não é uma substância, mas um processo múltiplo, em constante reinvenção.

Não há um "eu" verdadeiro, encoberto, aguardando nosso desvelamento. Quando tiramos uma máscara e pensamos que estamos nos aproximando de nosso "eu verdadeiro", aparece outra. Rosa Dias comenta em seu livro 'Nietzsche, vida como obra de arte', que "por trás de cada máscara, há sempre muitas outras máscaras; por trás de cada pele, outras peles" (p.104-105).

Michel Foucault também foi outro grande crítico da noção de sujeito, entendendo que esta ideia é uma invenção recente, que surgiu em meados do século XVIII, juntamente com a filosofia do sujeito. Neste sentido, a ideia de sujeito não é uma descoberta, mas uma invenção. O sujeito foi inventado, bem como suas características e disposições.

"Em primeiro lugar, penso efetivamente que não há um sujeito soberano, fundador, uma forma universal de sujeito que poderíamos encontrar em todos os lugares. Sou muito cético e hostil em relação a essa concepção de sujeito. Penso, pelo contrário, que o sujeito se constitui através das práticas de sujeição ou, de maneira mais autônoma, através de práticas de liberação, de liberdade."
(Michel Foucault, 'Uma estética da existência', 1984, em 'Ditos & Escritos Vol. V - Ética, Sexualidade, Política, 291p.)

Foucault abandonou a ideia de uma "teoria do sujeito", que entendia este enquanto substância identificável, para compor uma "analítica da subjetivação", que entende o sujeito a partir de um olhar histórico e geograficamente situado num tempo e local específico, que se constitui na ambiguidade entre o submetimento e a resistência.

Por abandonar a teoria do sujeito, ele não buscou alcançar uma "unidade" ou uma "verdade" sobre o sujeito, mas compreender seus distintos modos de se tornar sujeito, em diferentes tempos e espaços, sobretudo como reagia à cada situação e circunstância em que estava inserido. Seu interesse não era entender o que o sujeito é, mas sobre o modo como o sujeito se constitui, a subjetivação.

"A única pessoa que se comporta de maneira sensata é meu alfaiate. Ele tira minhas novas medidas todas vezes que me encontra, enquanto as outras pessoas continuam com as medidas velhas e esperam que eu me encaixe nelas."
(George Bernard Shaw)

Neste sentido, o conhecimento de si não é suficiente para nos entender, pois não há um "eu" a ser encontrado, descoberto ou decifrado. Como somos multiplicidades, para perceber a nós mesmos seria necessário nos observar por meio de uma multidão de olhares, levando em consideração nossa história, as configurações de nosso tempo, e mesmo assim só perceberemos alguns elementos de nossa experiência.

Entendemos o mundo a partir de nossos impulsos e necessidades, cada impulso opera com um desejo de controle sobre os outros, buscando impor sua perspectiva. Não há uma origem a se alcançar, as coisas não possuem um fundamento, um princípio ou uma essência a ser revelada, mas se dispõem a um constante jogo de aproximações, distanciamentos, avaliações e perspectivas.

"Salve-se quem quiser,
perca-se quem puder!"
(Paulo Leminski)

A verdade não é algo acabado ou absoluto, não é uma adequação do intelecto a um fato, mas uma criação, recheada de interesses. Não há um significado único sobre os fatos, pois estes são sempre interpretados por alguma pessoa a partir de um ponto de vista específico, de seu contexto, sua situação, intenção e suas condições no momento.

Deste modo, podemos muito bem substituir a ideia de "eu" por intensidades, interesses, disposições e modos de ser. Essa mudança implica numa mudança de olhar sobre o que podemos fazer de nós mesmos.

A "busca" de um "eu" é muito mais uma "armadilha", pois ao fazer isso não encontramos um "eu", mas inventamos um "eu". O conhecimento não "liberta", ele organiza, define, explica e delimita, estabelece configurações e identidades, sendo oposto ao movimento, ao fluxo e da transformação.

"Não me pergunte quem sou e não me diga para permanecer o mesmo."
(Michel Foucault)

É mais interessante e potente se desconhecer do que se conhecer, perder de vista a ideia de que exista um "eu" ou um "você", e simplesmente seguir, num processo que se forma e se transforma, sem nenhuma necessidade de "identidade" ou "unidade", mas permitindo ser como for, conforme os interesses e possibilidades momentâneos, reconhecendo as rupturas, os desvios, e tudo o que há de estrangeiro na existência.

Neste sentido, podemos muito bem substituir a ideia de "eu" por intensidades, interesses, disposições e modos de ser. Essa mudança implica numa mudança de olhar sobre o que podemos fazer de nós mesmos. Se for para ser algo, que seja um passageiro ou um andarilho, e nada mais que isso...

Perca um "eu" a cada dia...

não procure saber quem você é
a identidade é uma paralização,
mais vale experimentar
prazeres, atividades e relações

somos experiências,
momentos, mutantes..

não espere se "encontrar"
para fazer algo
estamos a todo momento
fazendo algo..
e o "eu" não passa
de uma ficção

melhor que encontrar um "eu"
é inventar um "eu"
experimentar um "eu"
e trocar quando quiser

o "eu" não é uma
unidade permanente,
mas algo
múltiplo e transitório
não queira um "eu"
prefira passagens
experiências

perca um "eu" a cada dia,
subverta a noção de "eu"
mais vale se perder
do que se encontrar.

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