Desanálise na prática terapêutica

Proponho a desanálise enquanto uma postura terapêutica crítica, libertadora e criadora, que contraria os paradigmas tradicionais da análise psicológica, possibilitando uma compreensão diversa, plural e transitória da experiência humana, por meio de um processo de desanalisar, desteorizar, desidentificar e despsicologizar, visando multiplicar, rasgar, ampliar, romper e experienciar múltiplos caminhos e modos de vida.

A análise psicológica tradicional é caracterizada pela delimitação, identificação, representação e interpretação. O analista, com seus conhecimentos teóricos e entendimento de mundo, busca identificar as características que se repetem em outra pessoa, reduzindo fenômenos complexos em elementos mais simples, se colocando como um detentor do saber sobre o outro. Essa prática limita a compreensão sobre a pessoa, reduzindo a complexidade da experiência humana em categorias psíquicas.

Contrariando esta tendência, a desanálise propõe uma abordagem radicalmente distinta, que não busca interpretar ou psicologizar a experiência de uma pessoa, não busca identificar ou representar, mas "desanalisar" - abrir espaços para a singularidade, para as diferenças e as excentricidades de cada pessoa. Ao invés de tentar encontrar uma verdade única ou um "eu" essencial, a desanálise reconhece e valoriza a multiplicidade de experiências compõem uma pessoa.

"A vocação da análise, portanto, não é dizer o que somos, mas sim promover a escuta daquilo de que estamos em vias de diferir - ou seja, a sustentação de devires-outro."
(Suely Rolnik, em 'Mal-estar na diferença')

Deste modo, a desanálise habilita um espaço distinto para pensar com a pessoa, co-criando pensamentos e possibilidades de vida. Trata-se de um convite para experimentar "eus" diversos e múltiplos, evidenciando nossas diferenças. Essa prática não busca transformar as experiências num objeto de estudo psicológico, mas permitir que a pessoa explore suas próprias leituras sobre si mesma, numa autopercepção não condicionada por categorias pré-determinadas ou normativas externas. 

Ao contrário da análise convencional, que frequentemente parte da perspectiva do analista e se apoia em valores morais e normativos, a desanálise propõe um espaço libertário e criativo, encorajando a pessoa a desidentificar-se das categorizações, experimentando novas maneiras de se perceber, ser e pensar, ampliando perspectivas sobre si. Esse processo não busca encontrar um "verdadeiro eu", mas explorar os afetos e as múltiplas facetas de cada um.

"Para Nietzsche, conhecer é dominar, tornar-se senhor de algo existente. (...) Uma interpretação única e definitiva não existe. A concepção artística do mundo requer uma multiplicidade de perspectivas."
(Rosa Dias, em 'Nietzsche, vida como obra de arte')

Praticar a desanálise consiste em não analisar nem interpretar o que a pessoa diz, mas se engajar um processo de reflexão e diálogo conjunto com a pessoa, tomando contato com suas experiências e afetos, tal como são experienciados, sem tentar encontrar respostas definitivas ou categorizar comportamentos como "normais" ou "anormais", "adequados" ou "inadequados", mas habilitar que a pessoa se expresse e se experiencie livremente, tomando contato com suas diferenças para fazendo algo distinto e criativo delas.

Em vez de mergulhar nas profundezas da "psique" em busca de significados "ocultos" ou buscar um "desvelamento do ser", a desanálise direciona seu foco para a superfície, para o que está aparente, ao que é percebido e sentido - as experiências de cada pessoa, que acontecem no momento presente, mesmo que sejam lembranças ou expectativas futuras. Essa disposição possibilita uma aproximação à complexidade de cada pessoa, valorizando sua processualidade e transformação constante.

"Pensar é sempre experimentar, não interpretar, mas experimentar, e a experimentação é sempre o atual, o nascente, o novo, o que está em vias de se fazer."
(Gilles Deleuze, em 'Conversações')

Neste sentido, a desanálise possibilita que a pessoa confronte e explore suas próprias leituras sobre si mesma. Ao invés de apresentar uma interpretação única e externa, o terapeuta facilita seu processo de autopercepção e ampliação de perspectivas sobre si, onde múltiplos "eus" podem se fazer presentes. Tal experienciação de si não segue normas ou padrões predefinidos, pois sugere uma abertura a novas possibilidades de pensar e viver.

Este posicionamento contraria as estruturas convencionais de análise e intervenção psicológica, propondo uma relação terapêutica baseada na coexploração e na cocriação de si. Por ser um enfoque não hierárquico e colaborativo, sua prática visa empoderar as pessoas em atendimento terapêutico, propondo um papel mais ativo e criativo na exploração de si, de modo a reconhecer e valorizar suas próprias narrativas, bem como se abrir para refletir outras perspectivas.

Enfim, esta terapêutica não busca encontrar respostas definitivas ou interpretar a experiência humana, mas evidenciar a diversidade, a multiplicidade e a experienciação como um processo contínuo de autopercepção e autotransformação. A desanálise nos convida a explorar novos caminhos para a compreensão e a transformação, não como um método científico, mas muito mais como uma filosofia e uma arte, possibilitando que algo diferente aconteça do encontro terapêutico.


O texto acima emergiu da escrita livre abaixo:

desanalisar, desteorizar, desidentificar
desunificar, despsicologizar, multiplicar

a análise delimita,
pressupõe algo
busca uma representação

o analista determina
um saber sobre o outro
a partir de seu entendimento
de mundo, de vida, de relações...

a análise é uma interpretação,
uma redução dos fenômenos
a elementos mais simples
que visa resolver algo

enquanto terapeuta
não analiso,
mas desanaliso

pratico a desanálise,
não procuro interpretar
mas pensar com a pessoa
e experimentar outros pensamentos e caminhos

não busco uma verdade
mas apenas compreender
singularidades e
multiplicidades

trabalho com
o que a pessoa diz
e com o que isso ressoa
na pessoa e em mim

não busco nada profundo
mas o que emerge na superfície
no aparente..
não pretendo entender
algo que esteja fora disso

encaro a terapia
como um espaço para
se desidentificar,
experimentar,
se perceber para se perder
desvirtuar identidades estabelecidas

a análise parte inevitavelmente
da perspectiva de quem analisa
está recheada de valores morais
normal e anormal,
adequado e inadequado...

esperar do analista
um "entendimento" sobre si
como se fosse
mais "legítimo" ou "verdadeiro"
é confessar-se incapaz
de estabelecer e legitimar
suas próprias leituras sobre si

a desanálise possibilita
que a pessoa confronte
sua própria leitura sobre si
sendo mais potente e criadora
do que a análise

entende que
não há nada a ser interpretado,
que não há um "eu" a ser encontrado,
mas vários "eus" que podem ser
experimentados

a desanálise possibilita
uma experienciação
e uma experimentação de si
onde não há nada a ser psicologizado

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