Micro-fascismos do cotidiano

O fascismo pode ser entendido como uma forma de intolerância para com as diferenças, um esforço de conservar o mesmo e o igual, evitando distintos modos de vida. Em nosso tempo, uma intolerância generalizada parece crescer de diversos pontos, discursos em favor da "ordem" que, ao invés de promover novas formas de vida, acaba por abolir a possibilidade de outros modos de vida.

Em nosso contexto histórico, somos atravessados por uma multiplicidade de micro-fascismos, que se fazem presentes nas relações cotidianas, seja entre pais e filhos, patrões e funcionários, maridos e esposas, entre outras. Nessas relações há muitas vezes um que reprova ou impede as condutas dos outros por meio de falas, olhares, ofensas e até mesmo agressões.

Os micro-fascismos acontecem na relação entre professores e alunos, quando o professor se coloca como detentor do saber e do poder sobre as condutas do aluno; quando o psicólogo, psicanalista ou psiquiatra submete seu paciente a um julgamento a partir do sintoma, deixando de lado toda uma gama de relações e experiências da pessoa; do vizinho que coloca uma música tão alta quanto uma casa de show e supõe que todos devam aceitar sua escuta passivamente.

Enfim, são diversas as circunstâncias onde uma pessoa impõe seus desejos e modos de vida sobre as outras, impedindo ou dificultando a resistência, desconsiderando que os outros tenham escolhas diferentes das suas, ou que possam ser diferentes, deixando de reconhecê-los enquanto pessoas, que possuem interesses distintos aos seus. São micro-ações que invalidam as peculiaridades e singularidades de cada um.

Para se resistir a esses micro-fascismos do cotidiano, conforme o filósofo francês Michel Foucault, é preciso deixar de lado a paranoia de unificar e totalizar, buscando proliferar os desejos e as ações, dando preferência sempre ao múltiplo e a diferença ao invés da repetição e da uniformidade, aproximando o desejo da realidade, conectando o desejo com a vida.

Essa questão de olhar o outro como uma ameaça ou como um problema, e supor que a "solução" seja a evitação ou a extinção do outro, é um bocado complexa, pois nós também somos outros para as outras pessoas, que estão a todo momento julgando nossas ações e interferindo em nossas escolhas, colocando em questão nossa existência.

Corremos o risco de nos relacionarmos com os outros de maneira fascista sem nem nos dar conta, talvez pela falta de autopercepção e criticidade. De certo modo, também atuamos de maneira micro-fascista com nós mesmos, quando impedimos nossas próprias diferenças, de fazer as coisas de outra maneira, interrompendo o fluxo de nosso devir, da criação e diferenciação de nós mesmos.

Quando definimos e delimitamos nossa existência, fazemos com que nossa própria diferença seja suprimida em favor da manutenção de uma identidade, regularidade ou forma. Assim também acabamos por restringindo a existência dos outros, encerrando estes em classificações e categorias, impedindo o surgimento de novas e outras maneiras de vida, exercendo pequenos controles sobre nós mesmos e os outros.

Em nosso tempo, o poder se opera evidenciando o corpo, os cuidados, a alimentação e a sexualidade. A modernidade opera um poder normativo, que classifica as pessoas em "sadias" ou "doentes", "normais" ou "anormais", "adequadas" ou "inadequadas", a partir da avaliação de quanto servem aos poderes estabelecidos. Estes poderes não se apresentam a nós claramente, mas são sutis e quase invisíveis, constituindo um corpo dócil e facilmente teleguiado.

Como convivemos em instituições desde nosso nascimento - a família, a escola e o trabalho, somos produzidos com o intuito de direcionar o nosso corpo e desejos a um modelo específico de vida. Acreditamos ser livres por fazer escolhas, mas há forças que nos escolhem antes mesmos de nos escolhermos. Nossos corpos são efeitos de poderes e de um esquadrinhamento da vida, de um controle de nosso tempo e espaço, direcionando nossas atividades.

Deleuze e Guattari propõem o "Corpo sem Órgãos" (CsO), apresentado inicialmente pelo poeta Antonin Artaud, "O corpo é o corpo / ele está só / e não precisa de órgão / o corpo nunca é um organismo / os organismos são os inimigos do corpo", como um corpo que se desterritorializa e reterritorializa, que não se delimita e não se encerra em organizações, mas que cria e recria maneiras de ser e de fluir, possibilitando assim novos modos de existir.

Referências:
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. Trad.: Luiz Orlandi. São Paulo: Ed. 34, 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Trad.: Raquel Ramalhete. 42ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 2014.
SCHÖPKE, Regina. Corpo sem órgãos e a produção da singularidade: A construção da máquina de guerra nômade. Rev. Filos., Aurora, Curitiba, v. 29, n. 46, p. 285-305, jan./abr. 2017.

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